A história é
implacável para explicar qualquer fenômeno contemporâneo. Tudo que acontece, já
aconteceu. Os exemplos podem não ser exatos, mas são precisos. E quem não
souber ler a história, para não repeti-la, será usado como massa de manobra por
interesses obscurantistas – e oportunistas -, pedindo para que o cadafalso da
forca se abra para cingir o próprio pescoço na corda.
A paralisação dos
caminhoneiros – com um fedorento cheiro de locaute – é complexa e disforme, é
uma classe inteira, entre autônomos e contratados de empresas, representados
por mais de 20 entidades, nenhuma delas sindicais (que deveria mediar a
negociação) e sem unanimidade entre os manifestantes. É uma classe que deveria
estar organizada, mas está mais para um motim popular, desta vez beirando a
inconsequência, como o povo às soltas nas ruas em 2013, pedindo cada um uma
coisa.
Não é da manifestação
que pretendo falar, mas ela é estopim para destrambelho mental de néscios. Com
uma política liberal estúpida de precificação de combustíveis, uma política
entreguista de venda de petróleo bruto e compra de refinados do exterior,
estando a Petrobras operando abaixo da capacidade para servir ao interesses
estrangeiros, mais a alta tributação no PIS/Cofins e uma crise de petróleo
internacional, a situação se explica em causas e efeitos. E fica claro como se
deve resolver o problema.
Mas neste ponto, na
instabilidade, na beira do caos, o oportunismo toma vida e uma minoria
desinstruída saiu do conforto de seus lares para pedir uma intervenção militar.
Como disse, a história explica o hoje com o ontem. Em 1972, um locaute de
caminhoneiros parou o Chile por 26 dias. O caos proposital levou ao golpe
militar de Pinochet, culminando com o assassinato (considerado “suicídio” pelo
regime) do presidente democraticamente eleito Salvador Allende.
A ditadura chilena
durou 27 anos, com milhares mortos e torturados. Para sorte do Chile, eles têm
museus do regime para nunca mais repeti-lo, assim como o Museu do Holocausto ou
o Museu do Apartheid. Pinochet, tardiamente, foi preso. O Brasil não soube se
curar da ferida ditatorial. Ainda temos ruas com nomes de tiranos, acobertamos,
sem investigação, suas barbáries, dando números oficiais pífios ao regime, e anistiamos
os criminosos de Estado, tratando-os como espectros a serem ignorados, que
morreram velhos e em paz – como quase todo canalha, que é incapaz de sofrer até
na morte.
Um brasileiro que sai
às ruas pedindo intervenção militar ou é alienado ou desonesto. Ou é uma pessoa
que precisa estudar a história, que precisa compreender com clareza o mundo em
que vive; ou, se estudou, compreende tudo isso e ainda quer a ruptura do Estado
Democrático de Direito, essa pessoa tem um alto grau de desonestidade com o
passado, com a sociedade e consigo mesmo. Eu prefiro apostar na falta de
instrução: quem pede um Estado autoritário, não sabe o que está pedindo.
Por exemplo, nesta
semana, um caminhoneiro à favor da intervenção militar reclamou da ação do
exército contra os manifestantes: “É desnecessário porque não somos bandidos
nem estamos fechando a via. Se a gente se recusar a sair o Exército vai fazer o
quê? Bater na gente?”. Basicamente, é assim que funciona uma ditadura:
repressão e proibição de manifestações. E olha que ainda vivemos na democracia.
Uma democracia que permite alguns de se manifestarem pedindo o fim do direito
de se manifestar. Paradoxal. Sintomático da incultura.
Democracia, diga-se,
atropelada quando demandas dos caminhoneiros são atendidas e há a recusa pelo
fim da mobilização. Quando alguém se senta pra negociar e aceita o interlocutor
da negociação, não importando quem seja, mesmo se for o ultracorrupto Michel
Temer, precisa cumprir sua parte quando receber o que pede. É assim que
funciona. O que vem depois é outra coisa, obscura, vazia e pouco clara.
Em um protesto de
2015, um ônibus decorado pró-intervenção militar foi guinchado pela Polícia
Militar, na Avenida Paulista. O veículo estava estacionado em local proibido e
o dono estava indignado com a ação da PM. Ele recebeu sua intervenção militar e
não percebeu. Seguiu culpando a democracia, dizendo em tom lamurioso e irônico
“Essa é a nossa liberdade!”, tudo por não poder descumprir a lei. E esse é o
grande problema de quem lambe as botas do autoritarismo: quer dividir a
população entre “eles” contra “nós”. Sem saber ao certo quem são “eles” e “nós”.
É praticamente um apelo à impunidade a si e uma punição exagerada aos outros.
Pra completar as
sandices, nesta semana, um grupo pró-ditadura teve a capacidade de pedir
intervenção militar ao som de “Pra não dizer que não falei das flores”, de
Geraldo Vandré, um hino contra a ditadura, censurada pelo regime que entrava às
portas do AI-5. É como clamar pelo fascismo cantando Bella Ciao, uma ignorância
e uma falta de conhecimento básico de história.
Outro argumento usado
é que os militares tomariam o poder para reestabelecer a ordem e chamar novas
eleições, apenas para eleger “honestos”. A história ensina de novo. Em 1964,
fora a dualidade política mundial da Guerra Fria, que influenciou diretamente
no golpe contra o “comunista” Jango, essa era justificativa para o regime. “Já,
já, entregamos pra vocês”, disseram. E o golpe dentro do golpe, em 1968,
enfiou-nos goela abaixo 21 anos de regime de exceção. Coitado do Lacerda, o
oportunista de antanho. Morreu com a biografia conspurcada como um
bananão-massa-de-manobra. Cada um colhe o que planta e escreve as linhas da
própria biografia.
Veja os exemplos de
Venezuela e Coréia do Norte. Não são regimes militares, mas são autoritários.
Os mesmos que criticam o autoritarismo destes países – que, por mais que tenham
eleição, são sempre suspeitas (Venezuela) ou fingidas (Coréia do Norte) –,
querem o autoritarismo no Brasil. Essas nações têm problemas sérios de violação
de Direitos Humanos não por serem alinhadas à esquerda, mas por serem
autoritárias.
O brasileiro que pede
intervenção militar precisa de uma intervenção educacional. Quem pensa que o
autoritarismo resolve problemas do dia pra noite, está enganado; está pedindo o
cerceamento da própria liberdade e dignidade, compactuando com abusos e
práticas condenáveis. Aquele que vende a ideia mágica de resolução de problemas
é um mentiroso oportunista. Mais que isso, romper a democracia
é um crime. O Brasil tem muitos desafios complexos e difíceis, que não serão resolvidos
na base de senso comum e tanque na rua. E ao que tudo indica, educação aos
incautos é o primeiro deles.